domingo, 11 de outubro de 2009

AS DUAS CACHOEIRAS

Damião Moreira Nunes
Castanhal, 02/02/2006.

Lá embaixo avistava a casa de Tia Vicência, casada com José Henrique. Próxima à casa ficava o primeiro brejo de cana, onde se escondia uma cobra preta muito grande, o terror das galinhas de pintainhos e das crianças, pois a notícia foi transformada na lenda de uma grande serpente. Bem próxima a ela ficava a casa de sua filha Zilma, a bondosa prima que Deus levou ainda quando jovem senhora.
Passando sobre a parede do açude do José Raimundo, logo se chegava a casa do Sr. Vicente da Silva, cuja principal atividade era transportar, em animais, cargas de rapadura, algodão, cachaça e cereais do Cariri para o Jaguaribe e Aracati, atividade esta que depois passou para seus filhos Mário, Nelson e Olavo. Sua esposa, a senhora Eliziária, ficou viúva e sempre cuidando daquela filharada.
Na história ou “causos” da Cachoeira, havia a “bandeira branca” da Dona Eliziária, que era o terror dos agricultores. É que em noites de chuvas pesadas, ela tinha muito medo de tempestades, e todos acreditavam que, se ela colocasse a bandeira branca na porta de sua casa, parava o temporal. Mas algumas vezes iniciava-se um período de verão que muito preocupava os lavradores com roças de legumes recém plantadas e achavam que o “estio” era efeito da bandeira branca na janela, no começo do inverno.
Boas lembranças de Chico Silva, suas valsas, seu violão e suas serenatas em noites de luar, na janela da nossa casa, para perturbar o sono da “menina Emerita”.
Subindo a ladeira, chegava-se à casa de Raimundo Belizário. Sua casa na Cachoeira podia-se falar que era a “feira do gado”. A lide todos os dias da semana começava de madrugada e ia até tarde da noite, de segunda a segunda. Muitos filhos, muita luta e muito trabalho. Ele administrava tudo, com a ajuda de Almir, Zé Belizário e todos os outros filhos e mais os moradores. Muito cedo tinha de tirar o leite, soltar o gado, mudar o gado, levar, trazer, prender, soltar, cortar capim, preparar resíduo, levar na bebida, no Riacho do Sangue, Fortaleza, comprar, trocar, vender etc. Até que conseguiram formar uma das primeiras fortunas ou capital considerável da família. Na administração da casa ficava a senhora Alaíde, que durante toda a vida teve uma participação muito importante naquele plano.
Logo depois se chegava à casa de Tio João Gregório, casado com Tia Sinharinha, também uma grande família e uma vida de muito trabalho. Ela era a modista da família, e ele dedicado à agricultura, até o final da vida. Quando a saúde não mais permitia, ele continuava ainda trabalhando.
Na casa de Pedro Moreira encontrávamos a única loja da Cachoeira, uma loja de tecidos, e foi nela que tia Emerita deixou suas irmãs e colegas de mocidade ou infância para fugir e casar com o Francisco Silva das serenatas, mesmo sem a aprovação do seu pai, nosso avô José Moreira. Naquela casa Pedro Moreira viveu com Tia Clotilde uma bonita história de amor, lamentavelmente interrompida com a saída dela daquela casa, desta vida e da felicidade. Ele muito inteligente, uma das primeiras pessoas de cultura desta tão grande família, deixou sua inteligência para os filhos Eliete, Tito e os demais filhos e netos.
Não muito longe ficava a casa e a escola da professora Dona Hilda. Ela não tinha mestrado ou doutorado, mas podemos considerar como “a mestra” da família. Ali muitas crianças deixaram a escuridão do analfabetismo e se encaminharam para a luz da cultura e do saber e desenvolvimento. Alguns chegaram a cursar uma Universidade, e depois, no caminho por ela orientado, ainda deram origem a muitos filhos e netos também com cursos superiores.
Tio Vicente Moreira, o pai da professora, casado com Tia Maria, morava ali bem perto da casa de Pedro Moreira com uma família de muitos filhos, destacava-se entre outras importantes qualidades, pela sua austeridade e autonomia sobre a família que foi criada com muito respeito aos pais. Ainda daquela família de Tio Vicente, dois filhos, Hilda e Moreira, emigraram para o Sul, e para o Paraná e Mato Grosso, onde deixaram suas famílias, de filhos e netos, para começar uma nova história.
Toda a família desde Mãe Teresinha era “católica apostólica romana”, procurando desde cedo aprender a amar e respeitar a Deus, e cultivar também uma fé muito grande em Nossa Senhora da Conceição, a padroeira da capela da Cachoeira. Movidos por esta fé, ainda mandaram alguns rapazes para o Seminário: Tio André, João Moreira, Raimundo Moreira, Antônio Moreira e Bilac. Infelizmente ficou só nos sonhos dos pais. A nossa família daqueles tempos não ordenou nenhum padre. Veio aparecer o primeiro agora no final de 2005, oitenta anos depois daquelas primeiras tentativas.
Chegando à casa do meu avô José Moreira, encontramos também uma história parecida com as demais. Ele primeiramente casou-se com a minha avó Ana Angélica e com o falecimento desta, ainda casou-se com a Sra. Francisca Gonçalves. Viveu 64 anos e trabalhou quase até o último instante de sua vida. Muitas roças de algodão, vazantes de arroz, moagem de cana etc. Muita animação e alegria nos anos bons de inverno, muito sofrimento e tristezas nos anos de seca. Uma curiosidade entre tantas histórias da vida do nosso avô, vida de luta e heroísmo, é que no dia em que ele completaria 100 anos de vida; nasceu lá em Rondônia o seu 500º descendente. Estas 500 pessoas se espalharam pelo Brasil, como o vento do Aracati se espalha pelo sertão. Aquele sobrenome de “Moreira” foi ficando em muitas casas e poucas mansões, mas em todos eles, o orgulho e a alegria pelo seu patriarca.
A primeira Cachoeira em si, que era a de Manoel Nunes, Mãe Teresinha, a capela, o engenho, a bolandeira, o canavial, é outra história, uma grande história para contar. Minha memória e inteligência são insuficientes para essa tarefa, mas fica a esperança de que alguém capaz, um dia queira fazer-nos o favor de relatar, para que fique gravado no livro da vida de todos nós e não se apague no esquecimento ou no descaso. Que as nossas raízes fincadas entre aqueles baixios, chapadas e tabuleiros, nunca permitam que a tempestade ou o vendaval da modernidade, da eletrônica etc., ocupada em saber quem somos, não se interesse também um dia, em procurar quem fomos ou de onde viemos, todos nós, e deixe tombar esta árvore secular, que é a história desta família.
Ali o trabalho com amor, honra e dignidade em todos os momentos era o projeto de vida daquele casal, “nossos queridos avós”. E aquela Cachoeira era o centro. Em volta, o José Raimundo, José Leandro, Simeão, Caatinga Grande, Ranchinho, Matadouro, Angicos, Malhada Grande, faziam parte do conjunto tão conhecido como CACHOEIRA DE MANOEL NUNES. Bem ao centro, o engenho e a capela, como um marco fincado pelo Coronel Roberto e tantos escravos, entre os quais, alguns talvez tenham vindo lá dos confins da África, trazendo um sangue diferente para derramar sob a forma de suor e sofrimento naquele pedaço de chão que um dia foi “o nosso grande mundo”.
E como todas as obras têm um esteio mestre, uma viga de sustentação, assim também acontecia com esta grande família, este esteio, esta viga de sustentação; era realmente a pessoa de “Mãe Teresinha”. Também uma outra história para alguém contar, a história de Mãe Teresinha, que é a história de todos nós, a história de nossas vidas.
Tem mais alguém para lembrar...
Quando nosso avô Manoel Nunes faleceu, lá pelo ano de 1913, deixou, entre muitos filhos, um garoto com quatro anos de idade. Este, ao lado de sua boa mãe, cresceu e se criou aprendendo muitas coisas como os outros irmãos, mas, sobretudo, o grande valor de dedicar à mãe um grande amor, um amor verdadeiro. Ele foi crescendo, desenvolvendo-se, mas logo descobriu que sua ferramenta de trabalho mais importante era “o pensamento”. Começaram a surgir diferentes idéias, novos planos, novos projetos, alguns sonhos. Logo achou que a Cachoeira era pequena para usar “a sua ferramenta de trabalho”. Abriu a porta de sua casa e saiu em viagem. Primeiro a Baixa da Areia, a R.V.C., o Casquilho, Pai Mané, Dois Riachos, Vilarém e seguiu sua jornada por São Paulo, Paraná, Mato Grosso do Sul, Rondônia, até um dia chegar ao Castanhal. Aqui ele criou o último pensamento, último projeto, último sonho. Falava para todas as pessoas que este era o maior projeto, o melhor sonho de sua vida. Aqui ele parou a grande viagem. Aqui ele ficou...
Mas a história do seu sonho e dos seus pensamentos não parou, não acabou, porque ficaram seus filhos e netos, com uma parcela do seu sangue a correr pelas veias, tentando construir novos sonhos, novos projetos, em novos caminhos. E os resultados dos seus planos e trabalhos movimentam a vida de Cacoal e Rondônia, como a sucessão de engrenagens a tocar uma grande máquina, impulsionando uma grande indústria.
Clodoaldo Nunes de Almeida, para mim, um grande homem, o meu maior amigo.
E agora, já que, de início, pensei em falar de duas Cachoeiras, quero contar para meus filhos e netos que quase nada disto acompanharam; quero falar-lhes de outra Cachoeira, também para que eles tentem entender como é a vida, o mundo que se transforma. E ali, segundo a teoria se “nada se acabou; com certeza tudo se transformou”.
É com grande tristeza que falo da Cachoeira dos nossos dias, a Cachoeira de hoje.
A primeira impressão é a imagem da solidão, do desânimo, da tristeza, da inércia, da falta de produção, da pobreza, da ausência e do abandono, pois lá onde viveram nossos avós, já não vive nenhum dos seus filhos e netos, todos seguiram outras estradas, em novos caminhos, e alguns parece até que esqueceram completamente tudo aquilo, que lá deixaram.
Muitas daquelas casas onde viveram pessoas aqui citadas já caíram, todas as obras por tantos deles edificadas também já foram destruídas, desapareceram completamente, restando “algumas vezes memórias ou lembranças naqueles que realmente foram seus amigos”. A erosão, pelo efeito das chuvas e dos ventos, transformou aquelas boas estradas, onde deixamos as nossas pegadas nas caminhadas da infância, em valas profundas, retiraram o solo, descobrindo o lajedo e a piçarra. Hoje já aparece o subsolo, o solo acabou e com ele também se foram as matas. As matas, que no inverno enfeitavam com suas folhagens verdes e suas flores perfumadas o nosso sertão, tão diferente nas grandes secas, hoje sem matas, sem folhas, sem flores, sem perfume, só tristeza e sofrimento para o homem e os animais.
Acabaram as matas que alimentavam nossos medos, em crianças, dos animais selvagens: onças, raposas, guarás, guaxinins (dos canaviais), talvez “o tirador de fígado”, ou quem sabe até mesmo um lobisomem. E à noite às sombras escuras dos Juazeiros, na borda das matas, poderia surgir também vultos de almas penadas, mostrando botijas de ouro ou pedindo rezas e perdões (Hoje parece brincadeira, mas naqueles tempos era assunto muito sério para nós, crianças).
Acabando as matas, também se foram as caças, os pássaros e as abelhas, o teiú (ou tijuaçu), de pele tão perseguida pelos tiradores e compradores de couro. Também as abelhas, o jataí, a jandaíra de mel medicinal e tantas outras espécies. As aves, a asa branca, o cabeça vermelha, a juriti, o sabiá, o bem-te-vi e os canários, também se foram com as matas e já não cantam mais no juazeiro, na bebida, lá na represa do açude, porque o açude já não tem mais água, pois as chuvas também parece que se foram com as matas e não enchem mais os açudes, nem os riachos, onde subiam para desovar curimatãs, traíras e piaus.
Que falta e que pena, já não tem mais aquele povo, nem daquelas matas; com eles e elas, se foi a alegria verdadeira dos sertões. Toda aquela gente, aquela família, que se comunicava, se amava ou se entendia, não acabou como as matas, mas até parece que fugiu dali como fazem as aves de arribação, que já não encontram as frescas sombras das árvores nem as saborosas frutas ou sementes das plantas, para se alimentar.
E finalmente como um angico ou uma aroeira que restou lá na caatinga grande, sozinha, esquecida e desolada, ainda lembra a presença daquelas matas; assim ultimamente ainda havia um último alguém, que no relacionamento e na amizade com as outras pessoas; ainda lembrava a amizade e o bom relacionamento entre todos, nos bons tempos passados da nossa grande família, mas também como a aroeira e o angico; tombou ao golpe do machado do destino. Foi em dezembro de 2004...se foi Solimar. Como muitos que se foram; ali deixou seu nome, sua história passageira e sua casa abandonada. Como muitos outros não emigrou para São Paulo, mas seguiu o chamado de Deus.
Solimar nos traz a lembrança de Tia Sara, ela que tanto lembrava a bondade de Mãe Terezinha.
Mãe Teresinha, a imagem do amor, também se foi quando ainda havia mata no sertão e gente sua cruzando os caminhos da Cachoeira.
Disse um dia o poeta que “viver é lutar”, e assim, numa simples comparação, se considerarmos aqueles alunos da professora Hilda, como soldados recrutas (na batalha da vida), seus pais como oficiais, e seus avós como coronéis, que bom se pudéssemos colocar naquela capela uma foto bonita de cada coronel, de alguns oficiais e até alguns soldados que tombaram heroicamente no campo de batalha, na luta da vida.
Hoje como não posso fazer isso com todo aquele exército, e vivendo tão longe daquela capela, vou guardando na minha memória e no meu coração, para minhas saudades e lembranças, uma foto bonita de três soldados “de muitas estrelas”:
O Dr. Moreira, meu irmão Luzimar;
Mário Ney Nunes, meu filho;
Clodoaldo Nunes de Almeida, meu Pai.
Muitas saudades deles e da nossa “PRIMEIRA CACHOEIRA”.

As casas da Cachoeira onde moraram Manoel Nunes, Chico David, Mundinho, Chico Nunes e várias gerações da família
Foto da arquivo da família.